A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 18 de novembro de 2024, uma emenda ao Marco Legal do Combate ao Crime Organizado (PL 5582/2025) que retira o direito de voto de pessoas presas provisoriamente — aquelas que ainda não foram condenadas, mas estão detidas à espera de julgamento. A mudança, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), recebeu 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção. O projeto completo, relatado por Guilherme Derrite (PP-SP), foi aprovado por 370 votos a favor, 110 contrários e 3 abstenções. Agora, o texto segue para o Senado Federal, onde enfrentará um novo teste de força política e ética.
Um direito que existia desde 1988
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil garantiu que apenas cidadãos condenados com sentença transitada em julgado perdessem automaticamente seus direitos políticos. Presos provisórios, mesmo atrás das grades, mantinham o título de eleitor e podiam votar. Em 2024, mais de 6.000 detentos em todo o país exerceram esse direito nas eleições municipais, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Era um princípio simples: preso não é condenado. E, enquanto não houver sentença final, a lei presume inocência.Van Hattem, porém, chama isso de "contrassenso". "Não faz sentido o cidadão estar afastado da sociedade, mas poder decidir os rumos da política do seu município, do estado e até do Brasil", disse ele durante a discussão. Para ele, votar exige liberdade e autonomia — condições que, segundo sua visão, não existem na custódia. "Preso não pode votar. É um contrassenso, chega a ser ridículo", completou.
Além do voto: penas mais duras e regras rígidas
A emenda que proíbe o voto é só uma parte do pacote. O Marco Legal do Combate ao Crime Organizado traz mudanças profundas no sistema penal. Integrantes de facções criminosas passam a responder por penas de 20 a 40 anos — e até 66 anos se forem líderes. Crimes como "novo cangaço", domínio territorial por meio de violência, ataques a carros fortes e sequestro de aeronaves agora são tipificados como crimes organizados.Gratidão, anistia e indulto são proibidos para esses crimes. Líderes de organizações criminosas serão obrigados a cumprir pena em presídios federais de segurança máxima. Para condenados primários por crimes hediondos com morte, o tempo mínimo em regime fechado sobe de 50% para 75% da pena. E os bens apreendidos — carros, imóveis, contas bancárias — serão direcionados ao fundo de segurança pública estadual, ou repartidos entre o estado e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), dependendo da investigação.
Divisões políticas e contradições
A votação revelou uma divisão inesperada. Embora a proposta viesse da oposição, vários deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) — como Arlindo Chinaglia, Benedita da Silva e Alencar Santana — votaram a favor. Isso contrasta com a posição de partidos da base do governo, como o Psol e a Rede Sustentabilidade, que se opuseram.Essa quebra de linha partidária mostra que o tema toca em algo mais profundo do que alinhamento político: o conflito entre segurança e direitos civis. Enquanto alguns veem a proibição como uma forma de deslegitimar o poder das facções dentro das prisões, outros temem que isso abra caminho para a criminalização da pobreza — já que a maioria dos presos provisórios é de jovens negros, pobres e sem acesso a bons advogados.
Um precedente perigoso?
A mudança não é só técnica. É simbólica. Se o voto pode ser retirado de quem ainda não foi condenado, onde se estabelece o limite? E se, no futuro, outras categorias — como pessoas sob monitoramento eletrônico ou até aqueles com processos em andamento — forem consideradas "não plenamente cidadãs"? O Tribunal Superior Eleitoral já havia dito, em 2019, que a suspensão do voto para presos provisórios violaria o princípio da presunção de inocência. Agora, o Congresso decidiu ignorar esse entendimento.Isso pode gerar uma batalha judicial. O Supremo Tribunal Federal (STF) pode ser chamado a decidir se essa emenda é constitucional — e, se for, em que medida. O risco? Um país onde o direito de votar deixa de ser um atributo da cidadania e passa a ser um privilégio concedido pelo Estado.
Quem perde com isso?
A medida também afeta direitos sociais. O projeto proíbe que dependentes de presos provisórios recebam o auxílio-reclusão, mesmo que a pessoa ainda não tenha sido julgada. Isso significa que crianças, idosos ou pessoas com deficiência que dependiam desse benefício podem ficar sem renda — só porque alguém da família foi preso. Sem prova, sem condenação. Só por estar detido.Isso não é justiça. É punição antecipada. E é exatamente isso que a Constituição tenta evitar.
Frequently Asked Questions
Por que a proibição do voto para presos provisórios é controversa?
Porque a Constituição de 1988 garante que só quem foi condenado com sentença transitada em julgado perde direitos políticos. Presos provisórios ainda têm presunção de inocência. Retirar o voto antes do julgamento é considerado, por juristas e defensores de direitos humanos, uma punição antecipada — o que viola princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Quantas pessoas deixarão de votar com essa mudança?
Em 2024, mais de 6.000 presos provisórios votaram nas eleições municipais, segundo o TSE. Esses são apenas os que tinham título de eleitor regularizado. O número real pode ser maior, já que muitos não atualizam seus dados ou estão em cadeias sem acesso a serviços eleitorais. A proibição afeta diretamente essa população, muitas vezes de baixa renda e sem representação.
O que acontece se o Senado aprovar o projeto?
O projeto será encaminhado à Presidência da República para sanção. Mas a medida provavelmente será contestada no STF por meio de ações de inconstitucionalidade. O Supremo pode derrubar a emenda, como já fez em casos semelhantes, ou confirmá-la — o que abriria caminho para outras restrições a direitos civis de pessoas não condenadas.
Como essa mudança afeta as famílias dos presos provisórios?
Além de tirar o voto, o projeto corta o auxílio-reclusão para dependentes de presos provisórios. Isso significa que crianças, idosos ou pessoas com deficiência que dependiam desse benefício para sobreviver podem perder a única renda que tinham — sem que haja qualquer julgamento. É uma punição coletiva, que afeta os mais vulneráveis.
Existe algum precedente histórico semelhante no Brasil?
Não exatamente. Durante a ditadura militar, direitos políticos eram suspensos por decreto. Mas na democracia, desde 1988, o Brasil foi um dos poucos países que mantiveram o voto para presos provisórios. Outros países, como os EUA, já têm restrições semelhantes, mas geralmente por condenações definitivas. Aqui, a mudança rompe com 36 anos de jurisprudência constitucional.
O que os especialistas dizem sobre essa emenda?
Juristas como Luís Roberto Barroso e Flávia Piovesan afirmam que a emenda é um retrocesso democrático. A Sociedade Brasileira de Direito Constitucional chamou a medida de "instrumentalização da segurança pública para cercear direitos civis". A ONU também já alertou que restrições ao voto sem condenação violam tratados internacionais ratificados pelo Brasil.